Monday, August 27, 2007

Marina Colassanti.




"Eu sei, mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E por que não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E à medida que se acostuma se esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo de viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem Ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre guerra.
E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz.
E aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: Hoje não posso ir.
À sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
À ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes.
À abrir as revistas e ver anúncios.
À ligar a televisão e assistir comerciais.
À ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor, ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar.
À lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir passarinho, a não Ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta do pé, a não Ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde em si mesma".
Marina Colassanti.




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Posted By: vivian

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